Por Luciano Pires, da Equipe do Correio Braziliense
Sem perdão
Nova interpretação na lei iguala escorregões éticos à corrupção na hora definir sentençasGraças a uma nova forma de interpretar as leis, servidores federais viraram alvo de duros processos administrativos e estão sendo expulsos do funcionalismo por praticarem atos que não necessariamente têm a ver com corrupção. Dependendo da gravidade, escorregões éticos e morais cometidos fora do trabalho — ou que contradizem o espírito do cargo — pesam tanto quanto embolsar dinheiro público. Cada vez mais, vida privada e vida funcional deixam de ser considerados mundos paralelos.
No meio jurídico, esse conceito está embutido na doutrina que prevê um padrão de comportamento moralmente adequado a todos os que desempenham alguma função pública. Trocando em miúdos, significa dizer que não basta ser honesto, é preciso parecer honesto. “O sujeito quando entra no prédio onde trabalha é o mesmo que saiu de casa. Se eu não for capaz de ter uma conduta ética lá fora, como serei capaz de ter aqui dentro?, justifica Jorge Hage, ministro da Controladoria-Geral da União (CGU) (leia entrevista abaixo).
Erros que mancham biografias e respingam no currículo pipocam a cada dia. Há casos curiosos, como o do advogado público que, com pena do amigo, resolveu fazer as provas para oficial de justiça no lugar do rapaz. Pego em flagrante, o servidor perdeu o cargo. Outro advogado público, que usou a estrutura (computadores e salas) do órgão em que trabalhava para elaborar petições — assumindo um tipo de advocacia privada — acabou surpreendido. Investigado pelos superiores, até hoje não conseguiu se explicar.
Boa parte do esforço de combate a desvios éticos e morais na administração pública está vinculada à atuação das corregedorias e das comissões de ética instaladas nos órgãos. A Advocacia-Geral da União (AGU) conta com uma das estruturas mais azeitadas. Só nos últimos dois anos, 14 servidores foram banidos do quadro efetivo da AGU. “No funcionalismo sempre imperou a política de ‘passar a mão na cabeça’, mas isso mudou”, explica Aldemário Araujo Castro, corregedor-geral do órgão. Segundo ele, com rigor e prudência, é possível separar o joio do trigo, o que, para o gestor encarregado de zelar pelos bons costumes, evita aborrecimentos com a Justiça. “São poucas as ações de contestação e menores ainda os índices de reintegração de servidores expulsos. Como bem diz aquela frase do Che Guevara: endurecer sem perder a ternura”, completa.
Os avanços são notáveis, elogiam os especialistas. No entanto, tudo ou quase tudo sempre esteve ao alcance das mãos, seja na Constituição ou na lei 8.112/90 (1). O que mudou de uns tempos para cá foi a tolerância social em relação a uma série de condutas praticadas por quem está no dia a dia da máquina, advertem os estudiosos. Em resumo, atualmente há mais cobrança e vigilância. “Vivemos uma mudança de paradigma. No passado, as coisas eram quase sempre ‘para inglês ver’. Abrir sindicância e processo administrativo contra alguém era o mesmo que não apurar nada. Não é mais assim. Os engavetamentos diminuíram bastante”, reforça Evânio Moura, conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil de Sergipe e autor de textos sobre administração pública e moralidade.
Carteirada
Até gestos simples, mas reprováveis, como as famosas carteiradas andam na berlinda. Embora ainda bastante presente na cultura nacional, e impregnado à burocracia, o mau hábito de abrir portas com brasões ou crachás vem sendo repreendido de forma rígida pelos gestores. Brasília, que é considerada a meca dos adeptos dessa prática, coleciona histórias. “Uma denúncia anônima chegou até a corregedoria dando conta de que um servidor tentou entrar em uma boate de graça com 10 amigos. O dono do lugar ligou para a polícia”, diz um corregedor. “Investigamos um caso de um agente público que fechou a rua com cones para permitir o acesso exclusivo de convidados para a sua festa particular”, revela outro.
Depois de investigados, tais episódios renderam advertências constrangedoras aos servidores. “No mínimo, hoje em dia, o servidor precisa dar explicações sobre seus atos. E isso incomoda muita gente que acha que pode tudo”, completa mais um experiente corregedor. Sinal dos tempos, reconhece Maria Pellegrina, ex-juíza e consultora da Opice Blum Advogados. Ela lembra que os bons exemplos de punição e repressão a desvios éticos e morais podem alimentar um ciclo virtuoso na administração pública. “A pergunta é: será que os planos mais elevados da administração serão atingidos? Por enquanto, acho um pouco difícil”, adverte a especialista.
1 - BÍBLIA DA MORALIDADE
A lei que rege o servidor público, no capítulo dedicado aos deveres, estabelece que o funcionário deve manter “conduta compatível com a moralidade administrativa”. O texto, apesar de genérico, permite pela via da interpretação enquadrar uma série de casos que não têm relação direta com o exercício da função ou do cargo.
Entrevista - Jorge Hage“Não à agiotagem privada”
Para o controlador-geral da União, sociedade não tolera mais abusos
Não há descolamento possível capaz de diferenciar o servidor do cidadão. Se está na lei que determinadas condutas são reprováveis, as punições valem tanto para dentro como para fora da repartição. É o que pensa o ministro Jorge Hage, da Controladoria-Geral da União (CGU). “O servidor é proibido de praticar usura sob quaisquer de suas formas, não pode praticar agiotagem na vida privada”, diz. Hage adverte que punir o mau servidor por práticas que não estejam diretamente relacionadas ao dia a dia do funcionalismo é uma tendência que veio para ficar, pois a sociedade e a administração pública não toleram mais abusos. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Correio.
A forma como o servidor se comporta fora da repartição ganhou importância, tem pesado na hora de qualificá-lo enquanto profissional. O que o senhor acha desse entendimento?
Concordo integralmente. Essa linha tem a ver com a consciência cada vez maior no mundo jurídico de que os princípios não devem ficar lá em cima, pairando na estratosfera, e as leis, cá embaixo, sendo interpretadas de forma autônoma, como se uma coisa nada tivesse a ver com a outra. Qualquer agente público precisa ter uma conduta moralmente ilibada, porque as coisas não são separáveis, como se o mundo do trabalho fosse uma coisa e o mundo da vida social, outra.
É dessa maneira que a CGU tem agido?
Sim, esse é um entendimento que tem total acolhida na CGU.
O que mudou: a administração ou a sociedade?
As duas coisas. A administração responde à sociedade. O conceito central é integridade institucional, que é o que resulta desse conjunto de preocupações éticas, de combate à corrupção.
Qual o papel do Judiciário?
É fundamental. Mas se formos esperar pelo Judiciário, estamos mal. E falo como juiz. O problema não está na Justiça de primeira instância. Está na legislação processual, que não permite que as ações cheguem ao final em menos de 15 anos, combinado com aquilo que chamo de exacerbação dos princípios de presunção da inocência, de direito ao contraditório e de ampla defesa, de direito ao sigilo, que, no Brasil, se transformaram em dogmas absolutamente inadequados à nossa realidade.
Dupla personalidade
Servidor, com pena do amigo, fez provas de um concurso público fazendo-se passar por outra pessoa. Pego em flagrante, acabou perdendo o cargo.
Só queria “ajudar”
Funcionário de um ministério tentou levar um computador funcional para casa. Apanhado na portaria, argumentou que só queria provar o quanto é fácil desfalcar o patrimônio público.
É alvo de sindicância.
Veneno e antídoto
Encarregado de autuar empresas que vão para a dívida ativa da União negociava com empresários devedores a melhor defesa a ser apresentada junto aos órgãos fiscalizadores federais para escapar da punição. Foi banido do funcionalismo.
Em causa própria
Advogado público usou a estrutura da AGU, inclusive computadores e salas, para elaborar petições que eram assinadas por terceiros. Por praticar advocacia privada, foi expulso do quadro efetivo.
Sem perdão
Servidor preso sob a acusação de pedofilia acabou demitido depois de uma rigorosa investigação da polícia e da corregedoria do órgão. Material encontrado no computador de trabalho embasou o processo de desligamento.