sábado, agosto 02, 2008

Querem mexer na Lei de Anistia. Épossível?

Jobim rebate Tarso e diz que Lei da Anistia não vai mudar
FÁBIO GUIBU/GRACILIANO ROCHA

Planalto afirma que punição a torturadores da ditadura não foi discutida no governo

Ministro da Justiça diz ter expressado visão pessoal; para o chefe da Defesa, "não existe hipótese de você rever uma situação passada"

O ministro da Defesa, Nelson Jobim, se opôs ontem frontalmente à idéia defendida por seu colega de ministério Tarso Genro (Justiça), de modificar a Lei da Anistia para permitir a punição de torturadores e assassinos da ditadura militar. "Não haverá mudança na Lei da Anistia", declarou Jobim à Folha, após participar da cerimônia de troca de comando no CMNE (Comando Militar do Nordeste), em Recife. "A Lei da Anistia já esgotou os seus efeitos", disse. "Já foram anistiados, não existe hipótese de você rever uma situação passada." A idéia de criar uma alternativa jurídica para que a lei, de 1979, não impeça a punição de agentes públicos envolvidos em tortura e morte durante a ditadura militar (1964-1985) foi discutida anteontem, durante audiência patrocinada pelo Ministério da Justiça.

No evento, em Brasília, Tarso defendeu a tese de que não há delito político na tortura e que, quem agiu assim pode ser comparado "a qualquer outro torturador". Mas, para Jobim, a Lei da Anistia "foi auto-suficiente" e "satisfez a situação que tinha para satisfazer". E pediu: "Vamos olhar para o futuro".

Questionado sobre a possibilidade de existir uma alternativa jurídica para punir os torturadores, Jobim disse que "isso é um problema que tem que ser examinado pelo Poder Judiciário, e não pelo Executivo".

Na solenidade no CMNE, o ministro ficou ao lado do comandante do Exército, Enzo Martins Peri. Também questionado pela Folha sobre o assunto, Peri se negou a falar. "Nenhum comentário", disse.

Indagado sobre o que achava da declaração de Jobim, de que não haveria mudanças na lei, o comandante sorriu e disse: "Se o ministro falou, está falado".

No Planalto, subordinados do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentaram reduzir a defesa de punição a agentes públicos que cometeram crime de tortura a uma avaliação pessoal dos ministros Tarso e Paulo Vanucchi (Direitos Humanos).

Disseram, por exemplo, que o tema não foi discutido em reunião de coordenação, o encontro semanal de Lula com seus principais ministros em que são debatidas as questões mais relevantes do momento.

Segundo assessores e ministros ouvidos pela Folha, Lula sempre teve atitude de cautela e moderação em relação ao tema, embora reconheça que o debate "existe" e é recorrente.

Não há consenso de que o governo como um todo deva se envolver diretamente na discussão. Um dos motivos é que entre os próprios ministros há discordância sobre o tema.

Em setembro do ano passado, o lançamento do livro-relatório sobre torturas e mortes durante o regime militar abriu crise entre Planalto, Defesa e Exército. Intitulado "Direito à Memória e à Verdade", foi assumido como documento oficial pelo governo e lançado no Planalto com a presença de Lula. À época, o Exército divulgou nota condenando a hipótese de mudança na Lei da Anistia.

Sintonia
Em Porto Alegre, ainda sem saber das declarações de Jobim, Tarso afirmou ter expressado seu ponto de vista pessoal, não o do governo.

"A posição que manifestei ontem [anteontem] é uma posição minha e do Paulo Vanucchi [secretário especial de Direitos Humanos], abordando juridicamente o tema à luz do direito constitucional e das normas legais da anistia. Não é posição de governo."
Segundo o ministro, a discussão "é um debate do Estado democrático de Direito".

Colaborou LETÍCIA SANDER, da Sucursal de Brasília


Lei não precisa ser revista, diz ministro do STF

O ministro do STF Celso de Mello afirmou que a Lei da Anistia brasileira, de 1979, é "completamente diversa" das legislações de países vizinhos recentemente revogadas ou parcialmente revistas.

Para o ministro, "no caso brasileiro, os destinatários foram todos os que se enquadraram nos requisitos da lei". Ele acredita que a lei brasileira não teve a finalidade de beneficiar grupos específicos, "muito menos de privilegiar os que usurparam o poder no golpe de 1964".

Segundo Mello, a Corte Interamericana de Direitos Humanos "tem reconhecido a incompatibilidade de determinadas leis de anistia". Para ele, "são casos que não refletem o brasileiro".

O ministro explicou que, geralmente, as leis contestadas beneficiaram só os atores repressivos, como na "experiência de outros Estados latino-americanos governados por ditaduras, em que os governantes, na iminência de saírem do poder, se apressaram na autoconcessão de anistia em causa própria.

Mello relembrou o caso peruano, cuja lei foi revogada pela corte internacional. "A legislação peruana concedeu aos ditadores de então uma anistia a eles limitada. E a Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que a auto-concessão de anistia pelos próprios curadores do regime autoritário é um procedimento incompatível", disse. "Será este o caso brasileiro? A mim não parece que seja". (FELIPE SELIGMAN)


Guerrilheiros têm mais a perder, diz militar
RAPHAEL GOMIDE

O presidente do Clube Militar, general da reserva Gilberto Figueiredo, afirmou que quem tem mais a perder com a eventual revogação da Lei da Anistia são os antigos opositores da ditadura. Segundo afirmou, há arquivos judiciais relativos a crimes a eles atribuídos, enquanto provas contra torturadores não são documentais.

"Se abolirem a Lei da Anistia, quem tem mais a perder são os antigos guerrilheiros, porque os crimes que praticaram, também hediondos -seqüestros, assassinatos, tortura, terrorismo indiscriminado-, isso aí está registrado, nos anais da Justiça, arquivado. Por outro lado, o torturador... ninguém escreveu: hoje, torturei. Portanto, quem tem mais a perder são os antigos terroristas", afirmou.

Em evento do Ministério da Justiça anteontem, o titular da pasta, Tarso Genro, e o ministro Paulo Vannuchi (Direitos Humanos) defenderam que a Lei da Anistia, de 1979, não impede a punição de agentes públicos que tenham praticado tortura e assassinatos.
O tema é sensível nas Forças Armadas. As declarações provocaram a organização de um debate do Clube Militar, no Rio, na próxima quinta-feira, sobre o tema "Lei da Anistia: Alcance e Conseqüências".

Na opinião do general Figueiredo, não é possível se abolir a Lei da Anistia, "ainda mais para só um lado". Disse já ter consultado ministros do STF sobre o assunto e ter ouvido que a medida seria impossível.

"É a opinião deles [Genro e Vannuchi], não do governo, muito menos do Poder Judiciário. Quem tem de resolver isso são os tribunais. Já ouvi ministros do Supremo sobre isso e eles consideram impossível abolir a Lei da Anistia, ainda mais só para um lado", afirmou Figueiredo, que disse considerar a tortura "abominável".
Para ele e o presidente do Clube Naval, almirante José Julio Pedrosa, a iniciativa dos ministros é "política" e não vai prosperar no Judiciário. Pedrosa disse que "tem de prevalecer a lei do país, com a anistia, irrevogável", senão não há no país "tranqüilidade jurídica".

O presidente do Clube Militar atacou o PT e o governo ao comentar as reivindicações. "O ministro disse que tem de lamber as feridas. Acho que deveria pensar primeiro nas feridas deles mesmos, mais recentes, caso Celso Daniel, mensalões. Não vamos mexer em feridas quase cicatrizadas."

* Série publicado hoje na Folha de S. Paulo.


sexta-feira, julho 11, 2008

Opostos extremos

Paloma Oliveto - Enviada Especial

Estatuto da Criança e do Adolescente - 18 anos
Enquanto Belo Horizonte se destaca pelo cumprimento do ECA, em Abaetetuba (PA) garantias são ignoradas

Dois mil e novecentos quilômetros separam Belo Horizonte (MG) de Abaetetuba (PA). A distância geográfica, porém, não é maior do que o abismo entre as duas cidades no que se refere à garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes. Enquanto a capital mineira foi reconhecida nacionalmente pela Fundação Abrinq por fortalecer a rede de proteção à infância, o município paraense ganhou fama internacional por um motivo vergonhoso: a denúncia, em dezembro do ano passado, da prisão de uma menina de 15 anos numa cadeia comum, com 20 homens, onde sofreu abuso sexual.

Dezoito anos depois da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Belo Horizonte ainda caminha para assegurar a plenitude da garantia de direitos, mas os resultados começam a aparecer. Os conselhos tutelares estão bem estruturados, os programas sociais funcionam e a capital investe 31% do orçamento na população infanto-juvenil. “Os programas e projetos em curso ainda não atendem toda a demanda, mas houve muito avanço nos últimos anos, isso é inegável”, afirma o conselheiro tutelar da Região Leste, Samuel Viana Moreira.

Em Abaetetuba, ao contrário, meninos e meninas não são prioridade. “O poder público só funciona sob pressão”, admite o bispo Flávio Giovaneli, ameaçado de morte por denunciar o caso da adolescente encarcerada. Resta à sociedade civil unir forças para enfrentar as mazelas que atingem as crianças, como exploração sexual, trabalho infantil e tráfico de drogas. A Pastoral do Menor, ligada à arquidiocese, é a organização não-governamental mais atuante na cidade, e busca, por conta própria, garantir os direitos da infância. Um trabalho penoso, num local onde meninas se prostituem durante o dia, crianças perdem membros do corpo nas olarias, meninos traficam e são usuários de drogas.

O Correio e o Estado de Minas mostram, hoje, as duas realidades conflitantes. De um lado, a cidade que busca respeitar os 267 artigos do Estatudo. De outro, o município onde o ECA parecer sequer existir.

Abaetetuba (PA) — Todos os dias, a Feira da Farinha arrasta uma multidão ao porto da cidade. Tem gente que sai de municípios vizinhos para comprar peixe, toucinho, temperos, raízes medicinais e produtos industrializados, que passam por espelhinhos com moldura laranja a cigarros falsificados. Há também quem vai comprar o corpo de crianças, vendido a R$ 10. Dois reais mais barato do que o preço de um frango assado.

Mal começa a escurecer e as meninas iniciam a peregrinação pelo cais. Dividem o espaço com os urubus, ávidos por restos de comida. Ninguém as perturba. Às vezes, uma ou outra oferece seus serviços na feira ainda pela manhã. Quartinhos nas sobrelojas, que cobram R$ 15, são usados para os programas. Mas, às vezes, os próprios barcos servem de cenário.

“Criança pequena fazendo programa? Tem demais. Um tenente da Polícia Militar é freguês de todas, mas eu sou a preferida dele. O tenente também dá dinheiro pra gente comprar drogas.” Quem conta é a prostituta Shirley*, 24 anos, nas ruas desde os 6. Entre suas concorrentes, há uma família inteira: uma menina de 13, uma adolescente de 16 e dois jovens de 18 e 21, ambos travestis. A mãe, de 48 anos, dependente química, tenta justificar: “Estou desempregada, passando dificuldades. Então a gente vai tentando se virar”. Na casa sobre palafitas, de três cômodos, o esgoto corre a céu aberto. No único quarto, não há camas, somente uma rede. O único enfeite é uma imagem do Coração de Jesus, pregada na geladeira vazia de comida.

Símbolo de violação
Cidade paraense às margens do Rio Maratauíra, distante cerca de 80km da capital, Abaetetuba continuaria sendo apenas um pontinho cravado no mapa do Pará se, em dezembro do ano passado, o caso de uma adolescente de 15 anos, trancafiada na cadeia pública com 20 homens, não tivesse corrido o mundo e a tornado símbolo da violação dos direitos da infância. Histórias como a dela e a da família que se prostitui causam pouco impacto entre os moradores de uma cidade acostumada, historicamente, a maltratar suas crianças. “Eu mesma já fiquei presa naquela cadeia. Dormia no corredor”, diz Shirley, com uma calma perturbadora. E, com a concordância de muitos habitantes de Abaetetuba, arremata: “Ela ficou presa com os homens porque quis. Aquela menina não presta”.

“Aquela menina” era vista como estorvo pelos moradores. Afinal de contas, segundo eles, roubava, usava drogas e dava trabalho aos professores. “Ninguém gostaria de tê-la como vizinha”, atesta o bispo da cidade, dom Flávio Giovenali, ameaçado de morte por denunciar as violações aos direitos humanos cometidas na região. A adolescente, diz ele, é reflexo das condições socioeconômicas. E o que aconteceu com ela, o retrato do abandono por parte do poder público. “É um problema do próprio sistema carcerário. Não tem onde colocar os menores infratores. O que fazer com eles?”, questiona. Depois que prisão da garota veio à tona, a delegacia acabou demolida. Não há previsão para a construção de uma nova.

Há mais de uma década na cidade paraense, o bispo denuncia a falência do sistema educacional que, para ele, é uma “fábrica de analfabetos, de gangues e de homicídios”. Até a quarta série do ensino fundamental, a educação é municipalizada e não faltam vagas. Porém, o índice de evasão é alto: 35%. “As crianças repetem, repetem, acham que são burras e acabam desistindo”, diz dom Flávio, que usa dados oficiais do Ministério da Educação. Da quinta à oitava séries, o problema se agrava. Por ano, mil crianças que deveriam passar da quarta para a quinta ficam sem estudar por falta de vagas. “No melhor dos casos, se 75% delas ficarem quietinhas em casa, isso já significa 250 adolescentes nas ruas, sem fazer nada. E isso numa estatística otimista”, ressalta.

Tráfico internacional
Se as ruas das cidades são sinônimo de risco para crianças e adolescentes, em Abaetetuba o perigo é redobrado. A partir de meados da década de 1990, o município passou a integrar a rota internacional do tráfico de drogas. Os entorpecentes vêm de Medellín, na Colômbia, e têm como destino a Guiana, de onde partem para a Europa. O posicionamento geográfico da cidade — rodeada por ilhas — dificulta a fiscalização e atuação da polícia. “Hoje, além da exportação, há consumo interno. As bocas-de-fumo funcionam com a conivência de policiais. Alguns vão uniformizados receber a propina”, denuncia Giovenali. “O tráfico de drogas não sofre nenhum arranhão.”

O resultado pode ser observado nas zonas periféricas da cidade. Em meio às casinhas sobre palafitas, há aglomerados de jovens de manhã até a noite. Aos 14 anos, Jonas** já foi preso por tráfico. Ajudava o pai, vendedor de maconha, a distribuir a droga pela cidade. Na delegacia, uma policial recebeu suborno de R$ 250 para liberá-lo. A mãe do adolescente garante que ele não é usuário. Diferentemente de um outro menino, de 8 anos, que já se tornou dependente químico.

* Nome fictício, a pedido da entrevistada
** Nome fictício, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente

Falta de horizonte

Em Abaetetuba, quem quer fugir da quase condenação a um futuro de marginalidade e abandono tenta, bravamente, se apegar às poucas opções disponíveis numa cidade onde não há cinemas nem teatros. Eliana da Conceição Ferreira, 14 anos, participa da Pastoral do Menor, movimento da Igreja Católica que organiza cursos e atividades de cidadania voltados aos adolescentes. Uma das tarefas do grupo é o estudo do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Eliana conta que um dos direitos garantidos pelo ECA e violados na cidade é o acesso à escola. Estudante da oitava série da Escola Estadual Professora Terezinha de Jesus Lima, a menina sofre com as condições precárias. As salas de aula não têm forro. O sol bate forte no rosto dos estudantes que, não à toa, acabam abandonando o estudo. Somente neste ano, 500 alunos pediram transferência para outras escolas. Muitas ficaram sem vagas. “Nem dá gosto de estudar assim”, diz Eliana.

O mesmo problema é enfrentado por Laura*, 15 anos, menina que quer estudar direito para evitar que as crianças sejam vítimas de violações. “No ano passado inteirinho ficamos sem dois professores. Mesmo assim, passaram todo mundo para a outra série”, diz. Além das condições físicas precárias da escola, ela enfrentou, até o mês passado, outra dificuldade para estudar. Órfã de pai aos 3, abandonada pela mãe aos 6, Laura trabalhava para ajudar a avó, que recebe um salário mínimo por mês, a pagar as contas.

Até o ano passado, ela cuidava de três crianças das 12h às 21h. Ganhava R$ 120. “Mas não dei mais conta, era muita coisa para fazer”, conta. Recentemente, começou a trabalhar para uma comerciante, fabricando velas de umbanda. “Já me queimei muito. Tem que puxar o pavio com a vela ainda quente, é um trabalho muito chato.” Só largou o ofício porque a lojista não pagou o que devia. O irmão de 10 anos, por exemplo, continua na labuta. Vende caroço de açaí das 17h às 23h, a R$ 2 por dia, sem ser incomodado por nenhum agente público. “Acho que é por isso que ele já repetiu três vezes a segunda série”, arrisca Laura. (PO)

* Nome fictício, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente

Compromisso com a lei

Thiago Herdy - Do Estado de Minas

Estatuto da Criança e do Adolescente - 18 anos
Na capital mineira, avanços nas políticas de atendimento à infância garantem a preservação de direitos

Belo Horizonte — Bairro Taquaril, Região Leste de Belo Horizonte. Fábio Henrique Ferreira da Silva, 12 anos, mostra as garrafas de cachaça vazias lançadas no rio preto de esgoto a menos de 20m da porta de sua casa. Garante que os pés descalços não doem quando pisam no que restou de uma casa demolida no lote ao lado, lugar de soltar papagaios com os irmãos Maicon, 11, e Pablo, 13. Prefere não falar sobre o vaivém de rapazes na escadaria perto da janela de casa e dos tiros (que vêm deles, desconfia), durante a noite. Depois das 21h, Flávio dorme e está cansado, porque passou o dia na Escola Municipal Alcida Torres. Lá, ele estuda, mas também almoça, joga bola, lancha e participa de oficinas. A mesma rotina vive Joel Alves Teixeira, 11, que sonha, um dia, ter uma oficina mecânica. “Se não vier para cá (escola), não sei se vou ser alguém na vida”, gosta de repetir o garoto, citando o discurso da mãe.

A despeito da desigualdade social que ainda berra em um dos bairros mais pobres da capital mineira (a renda média do Taquaril é de R$ 259; a de BH, R$ 1,2 mil), o futuro de meninos e meninas da região vai sendo moldado com cuidados que não existiam à época de seus pais e avós. Dezoito anos depois da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o avanço das políticas de atendimento à infância são sinais de esperança não apenas para famílias da região, mas para toda cidade. O esforço de Belo Horizonte foi reconhecido pelo Programa Prefeito Amigo da Criança, da Fundação Abrinq, que analisou a evolução de indicadores de saúde, educação e proteção social na capital mineira na última gestão.

De 2,2 mil municípios do país que se disseram comprometidos com a melhoria da qualidade de vida de crianças e adolescentes, 139 foram agraciados. São lugares onde direitos preconizados pelo ECA saíram do papel e se materializaram em uma rede de proteção mais fortalecida. “Os programas e projetos em curso ainda não atendem toda a demanda, mas houve muito avanço nos últimos anos, isso é inegável”, afirma o conselheiro tutelar da Região Leste, Samuel Viana Moreira, 41 anos, cuja função é realizar o primeiro atendimento a crianças e adolescentes que tiveram seus direitos violados. O discurso dos profissionais que trabalham nos nove conselhos espalhados pela cidade é um bom termômetro para medir a qualidade das ferramentas e mecanismos de proteção disponíveis a 775 mil pessoas de até 18 anos que vivem em Belo Horizonte.

Evolução
Samuel ocupou o cargo pela primeira vez em 1999 e voltou a ser eleito no ano passado. Nesse tempo, viu o Programa Sentinela (que atende vítimas de abuso e exploração sexual) passar a atuar dentro dos conselhos e assistiu à criação de uma delegacia especializada em apurar crimes que vitimizam crianças e adolescentes. Observou o fortalecimento da estrutura dos programas Liberdade Assistida (LA) e Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), voltados a adolescentes sentenciados a cumprir medidas socioeducativas em liberdade. E acompanhou de perto a evolução do atendimento nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), porta de entrada dos cidadãos às políticas municipais em áreas vulneráveis que valoriza os vínculos familiares. Hoje a cidade tem 15 centros, mas a população quer mais: na última edição do Orçamento Participativo, moradores pediram mais 22 espaços para a cidade.

“Os conselhos estão bem estruturados e o direito à educação está assegurado, mas nem sempre perto da casa dos meninos, como determina o ECA. Nesses casos, a Secretaria de Educação leva grupos, em ônibus, para outras unidades de ensino”, conta Samuel. Se o pedido de vaga do conselho não for atendido, o caso é encaminhado ao Ministério Público. Um dos papéis do conselheiro é visitar as famílias quando uma criança deixa de ir à aula. Dificilmente Samuel precisará visitar, um dia, a casa dos meninos citados no início desta matéria; eles adoram ir à escola. Estão entre os 350 alunos da Escola Municipal Alcida Torres inscritos no Programa Escola Integrada (31,5% do total de matriculados), iniciativa que estende o turno da aula com atividades diversas.

Se não participassem do programa, Fábio, Maicon e Pablo ficariam sozinhos em casa, pois a mãe trabalha o dia todo como empregada doméstica. Raquel Lima Barbosa Maia, de 11 anos, prefere as aulas de artesanato extraclasse, mas quer mesmo cursar medicina. Quando leu um texto sobre o ECA em livro de português, soube que os direitos à educação, cultura, esporte e lazer estão em lei, por isso, não podem ser desrespeitados. “Os governos tinham a obrigação de fazer isso (oferecer programas como o Escola Integrada), mas a sensação é de que estão fazendo favor, porque nem todo mundo participa”, afirma a menina.

Para que a política da infância e adolescência em BH continue fortalecida, a Fundação Abrinq convidará os principais candidatos à prefeitura da capital a assinar um termo de compromisso para que, se eleitos, adiram ao Prefeito Amigo da Criança. “O desafio é fazer um novo diagnóstico e estabelecer metas a serem cumpridas até o fim da gestão”, sugere Hélder Delena, da Fundação Abrinq. Se os investimentos entre 2009 e 2012 não resultarem em melhorias nas condições de vida das crianças, a cidade perderá o reconhecimento do programa.

CERIMÔNIA NO CONGRESSO
Uma sessão solene conjunta comemorou ontem, no Congresso Nacional, os 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Deputados e senadores da Frente Parlamentar de Defesa da Criança e do Adolescente aproveitaram para propor aos candidatos às prefeituras e câmaras de vereadores 18 compromissos para garantir os direitos de meninas e meninos. Entre eles, a ampliação de recursos no orçamento, a melhoria da qualidade do ensino e a garantia do pleno funcionamento dos conselhos tutelares. “Na época de campanha, não é raro ver políticos segurar crianças no colo e dizer que são o futuro do país. Mas é comum eles esquecerem desses compromissos quando se elegem” ,lembrou a senadora Patrícia Saboya (PDT-CE).

Revolução no orçamento

Qualquer cidadão de Belo Horizonte pode acompanhar como e quando a prefeitura municipal investe em políticas para quem tem menos de 18 anos. Incluído no ano passado na Lei do Orçamento Anual (LOA) e uma das recomendações mais interessantes do programa da Fundação Abrinq, o Orçamento da Criança e do Adolescente (OCA) é uma ferramenta que facilita a visualização dos investimentos na área e o acompanhamento da execução orçamentária. “As pessoas têm uma noção maior do que é investido e quanto se pretendia gastar. A sociedade passa a ter maior controle dos gastos, em um processo transparente e mais participativo”, elogia Hélder Delena, coordenador do Prefeito Amigo da Criança.

No OCA, as ações voltadas exclusivamente para meninos e meninas são contabilizadas integralmente; já as políticas não são exclusivas e citadas com valores proporcionais à população infanto-juvenil (32% dos moradores de BH). “No orçamento de 2008, estão aprovados R$ 1,2 bilhão em obras e R$ 1,6 bilhão para o OCA, 31% do orçamento do município. O comparativo mostra que a cidade faz da criança sua prioridade”, defende Beth Leitão, que nos últimos anos atuou como articuladora municipal do Prefeito Amigo da Criança em Belo Horizonte e, atualmente, é secretária de assistência social.

O OCA é acompanhado por uma comissão monitoramento do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), o que permite à sociedade civil e ao Judiciário cobrar a execução integral das políticas previstas. Em 2005, a prefeitura fez o primeiro acompanhamento orçamentário mas, como o OCA não estava incluído na lei de orçamento, os dados eram apresentados com mais de um ano de atraso. A análise dos números permitiu à população ter notícias boas — em 2005 formam investidos 92% de quase R$ 1 milhão previstos para ações de fortalecimento do Cmdca — e ruins — em 2006, a administração aplicou apenas R$ 501,9 milhões de R$ 610 milhões previstos para educação. (TH)

segunda-feira, junho 30, 2008

Os povos indígenas do Xingu e a hidrelétrica Belo Monte

Por Dom Erwin Kräutler - Bispo do Xingu e Presidente do Cimi

“É teu povo, Senhor, que eles massacram,

é tua herança que eles humilham!”

(Sl 93 (94),5)


Uma história que não é de hoje

O Xingu é um rio peculiar e único. Não dá para compará-lo com qualquer outro rio da Amazônia. Só ele faz aliança com o majestoso Amazonas através de um largo delta. Na foz, suas lindas águas verde-esmeralda se mesclam com as águas barrentas do rio-mar no qual se perde finalmente acima do Forte de Santo Antônio de Gurupá. Percorreu 2045 km desde o Mato Grosso, onde nasce a 600 metros acima do nível do mar na junção da Serra do Roncador com a Serra Formosa.


O Xingu é misterioso. Seu nome até hoje não tem explicação etimológica. Alguns estudiosos querem traduzi-lo como “casa dos deuses” ou melhor “Casa de Deus”, mas não se tem certeza qual seria a verdadeira raiz subjacente a este nome. Suas águas ora são calmas e pacíficas formando extensos lagos, ora furiosas e indômitas quando se estreitam em perigosas cachoeiras que já ceifaram muitas vidas de viajantes desavisados ou afoitos que teimaram enfrentá-las. Pode ser que não seja a Casa de Deus, mas que é um rio sagrado para os povos que habitam nas suas margens há milhares de anos, quem teria a ousadia de negar!

O Xingu narra a história do paraíso de antanho e repete as palavras divinas “E Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1,31). Mas conta também a história da rebelião contra Deus, da prepotência e arrogância dos homens que queriam ser como deuses (cfr. Gn 3,5). Relata ainda a violência assassina que ceifou a vida do irmão e brada pelos séculos afora a palavra de Deus: “Que fizeste! Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar por mim!” (Gn 4,10).


Na realidade, as águas do Xingu deveriam ter a cor do sangue por causa das inúmeras chacinas que se perpetraram ao longo dos séculos passados. A fúria antiindígena assassinou com armas de fogo a índios munidos apenas de arco e flecha e bordunas. Os invasores misturaram nas praças das aldeias com o barro vermelho também o sangue de indefesas mães e mulheres grávidas, jovens e crianças recém-nascidas. Milhares tombaram!


O mundo que se autodenomina de “civilizado” fechou os olhos, mostrou indiferença diante do sangue indígena bradando por justiça, gritando pelo direito de viver, reclamando a pátria que Deus criou para estes povos, defendendo o chão de seus mitos e ritos, chorando a terra onde sepultaram os antepassados. Até hoje o índio é chamado com desprezo de “silvícola”, um termo que insinua tratar-se apenas de algum bípede a mais, sem inteligência e livre arbítrio. Grande parte da sociedade envolvente vê ainda os povos indígenas como uma horda de malfeitores, de agressores hostis, selvagens, traiçoeiros, bárbaros, cruéis, não-confiáveis.


A história dos índios é uma história de rios de sangue derramado. Assim, tudo que hoje acontece de desfavorável, de adverso faz emergir do inconsciente coletivo destes povos todo o sofrimento do passado, toda hostilidade de que foram vítimas desde que os europeus fincaram o pé neste continente e os bandeirantes avançaram em todas as direções abrindo caminho a ferro e fogo.


Não faz tanto tempo que o próprio órgão governamental encarregado de proteger os povos indígenas, o Serviço de Proteção ao Índio – SPI, participou de massacres. Foi extinto por causa da repercussão no exterior das escandalosas carnificinas e substituído pela Fundação Nacional do Índio - Funai. Em 1967 veio à tona o assim chamado “Massacre do Paralelo 11” que aconteceu em 1965. Um seringalista do Mato Grosso deu ordem para exterminar uma aldeia. Primeiro sobrevoaram o povoado e jogaram bombas, depois entraram na aldeia e mataram a todos. Eu mesmo vi uma fotografia que mostra uma mulher indígena presa pelos pés, de cabeça para baixo, ladeado por dois homens brancos com facões. Esquartejaram a mulher. A mera lembrança da foto me causa arrepios. Isso não aconteceu no tempo dos bandeirantes, mas há apenas pouco mais de quarenta anos.


Naquela mesma década de 60 outra agressão bem planejada aconteceu no Xingu. A ação criminosa nunca foi investigada. Os criminosos não foram identificados e punidos por homicídio qualificado cometido em série. Alguns políticos queriam a todo custo tirar Altamira do ostracismo. A cidade precisava ser ligada através de uma estrada – mesmo que fosse apenas uma picada – com Santarém, o portal a dar acesso ao mundo.


O empecilho para concretizar o intento foram os índios Arara que viviam na região que hoje coincide com os municípios de Medicilândia e Uruará. Mas para não frear o progresso “esses selvagens” tinham que ser “eliminados”. Se a expedição avistasse um índio Arara, a ordem era de executá-lo imediatamente! Não se sabe do número exato de índios Arara mortos naquele tempo. Só se sabe que foram muitos. Morreram até eletrocutados quando se aproximaram do barraco da “força expedicionária” circundado por uma cerca de arame conectada com um grupo gerador. Os índios queriam ver os “brancos”, seguraram no arame e levaram choques de 220 volts.


A história deste povo que vivia sossegado no meio da mata entre Altamira e Santarém culminou em outra tragédia durante a construção da Transamazônica. A nova rodovia passava a três quilômetros da aldeia dos Arara no igarapé Penetecaua. Os índios foram até perseguidos por cachorros. A forçada convivência com o mundo dos brancos trouxe doenças como gripe, tuberculose, malária. Outros tantos morreram. O mundo lá fora, no Brasil e no exterior, nada soube desta desgraça que desabou sobre um povo. Continuava a aplaudir “a conquista deste gigantesco mundo verde”, palavras que constaram da placa afixada no tronco de uma castanheira derrubada quando o presidente da República deu solenemente início aos trabalhos de construção da Transamazônica. A que preço! Nunca me esqueço do dia em corria a notícia de que, finalmente, os “terríveis índios Arara” haviam sido dominados. Como prova de que o “contato” tinha sido um sucesso total, trouxeram uns representantes daquele povo que até então vivia livre na selva xinguara. Nus, tremendo de medo em cima de uma carroça, foram expostos à curiosidade popular como se pertencessem a alguma rara espécie zoológica.


Vivemos em outros tempos. Pelo menos assim pensamos. Celebramos 60 anos de promulgação da Carta Magna dos Direitos Humanos. Qualquer discriminação racial é condenada. É proclamada a igualdade de povos e raças. No Brasil temos desde 1988 uma Constituição Federal em que os direitos indígenas são inscritos no Artigo 231. Foi abolida a tutela de um órgão estatal. Os indígenas, outrora equiparados aos menores de idade e aos deficientes mentais, alcançaram plena cidadania, não precisando mais ser tutelados. Tem todo o direito de ir e vir como qualquer brasileiro. Mesmo assim, enquanto já estamos festejando os 20 anos da Constituição “cidadã”, parte da imprensa ainda não se inteirou desta novidade constitucional e há jornais insistindo que ”a Polícia Federal deverá pedir explicações à Funai (...) já que o órgão é o tutor legal dos índios brasileiros[1].


O salto qualitativo da letra constitucional para o chão concreto da realidade em que os povos indígenas vivem ainda não aconteceu. Se uma demarcação de área indígena é concluída com a homologação pelo presidente, prevista em lei, um clamor ensurdecedor se levanta pelo Brasil afora, reclamando que “há muita terra para pouco índio”. E o pior aconteceu há algumas semanas em Altamira. Uma rádio local se desdobrou em berrar agressões verbais contra os índios, insultos rassistas que fazem inveja ao tratamento destinado aos judeus pelo regime nazista. Pensávamos que tais excessos pertencessem a um passado longínquo e tivessem sido há muito tempo extirpados do vocabulário jornalístico. Infelizmente nos enganamos. A onda antiindígena assume novamente proporções alarmantes.


De Kararaô a Belo Monte

Muitos não recordam o tempo a ditadura militar e, já que a memória tem fama de ser curta, poucas pessoas se lembram dos mandos e desmandos dos presidentes plenipotenciários daquela época. Um deles foi o general Emílio Garrastazu Medici. Tornou-se célebre pelo Projeto de Integração Nacional e a construção da rodovia Transamazônica, inaugurada em setembro de 1972. Foi a década do “Integrar para não entregar” e de outro slogan que desencadeou uma migração sem precedência no Brasil. “Terra sem homens para homens sem terra!” exclamava eufórico o general-presidente, o que não deixou de ser um tremendo insulto aos povos indígenas que há milênios habitam a Amazônia. O presidente simplesmente os ignorou, despojou-os da cidadania, negou-lhes a existência, considerou-os definitivamente mortos.


Milhares de famílias rumaram do Nordeste, Centro, Sudeste e Sul para a Amazônia. No entanto, o Projeto de Integração Nacional previu também a construção de barragens. A rodovia cortou os grandes rios nas proximidades das principais quedas d’água. Já em 1975 a Eletronorte contratou a firma CNEC (Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores) para pesquisar e indicar o local exato de uma futura hidrelétrica. Em 1979 o CNEC terminou os estudos e declarou a viabilidade de construção de cinco barragens no Xingu e uma no rio Iriri, maior afluente do Xingu. Ao povo do Xingu negou-se qualquer informação mais detalhada. Só se sabia que o governo pretendia tocar a construção o quanto antes possível.


Os povos indígenas reagiram pela primeira vez em 1989. Vieram uns 600 índios para Altamira e hospedaram-se no centro Betânia da Prelazia do Xingu. Vieram para protestar contra a decisão do governo de sacrificar o rio Xingu. O encontro que os índios chamaram de “Primeiro Encontro das Nações Indígenas do Xingu” realizou-se entre os dias 20 e 25 de fevereiro de 1989 e alcançou uma enorme repercussão nacional e internacional.


A foto que retratou a cena em que a índia Kayapó Tuyra encostou a lâmina de seu facão no rosto do então presidente da Eletronorte e hoje presidente da Eletrobrás, José Antônio Muniz Lopes, percorreu o mundo inteiro e virou a logomarca da oposição indígena ao projeto de hidrelétrica. Tuyra tornou-se a mulher mais famosa do mundo Kayapó, mãe carinhosa com seus filhos e ao mesmo tempo guerreira intransigente quando se trata da defesa de sua terra e seu rio. Pouco depois daquele memorável encontro, o Banco Mundial negou o suporte financeiro e o projeto foi arquivado. Nunca, porém, foi abandonado. Já na década de 90 foi desengavetado e veio à tona com mais força.


No inicio do mês de junho de 2007, reuniram-se outra vez representantes de vários povos indígenas do Xingu no Centro Betânia da Prelazia do Xingu e insistiram que colaborássemos com eles para promover um Encontro dos Povos Indígenas semelhante àquele que aconteceu em 1989. Os índios pretendiam chamar a atenção do Brasil e do mundo, condenando o projeto faraônico que ameaça imolar ao deus-progresso o rio Xingu que para eles é sagrado, símbolo da vida, dádiva de Deus.


No dia 3 de junho de 2007, os participantes do encontro foram para a beira do rio, em Altamira, para uma manifestação contra o projeto de hidrelétrica ressuscitado que recebeu o nome “Belo Monte” em substituição à denominação anterior “Kararaô” que equivale a um grito de guerra do povo Kayapó. Mudou apenas o nome! O atual governo o considera prioridade no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). O presidente Lula antes de ser eleito manifestou-se contra Belo Monte. Do mesmo jeito vários membros do Congresso Nacional, entre eles o deputado federal Zé Geraldo (PT/PA), eleito pelas comunidades do Xingu, declararam-se visceralmente contrários, quando estavam em campanha eleitoral. Mas que surpresa para todos nós: depois de eleitos mudaram de posição. O que antes condenaram com veemência, de repente, da noite para o dia, passaram a defender com unhas e dentes. O que estaria por trás dessa repentina metamorfose camaleônica?


Doravante, o povo do Xingu é informado de que se trata apenas de uma Unidade Hidrelétrica (UHE) e não mais de um Complexo Hidrelétrico. Não deixa de ser uma mentira deslavada que se propaga sem nenhum pudor, um artifício empregado propositadamente para ludibriar o povo. Todo mundo sabe que seria um incalculável desperdício investir bilhões de reais em uma usina que durante o verão tropical não tem condições de funcionar plenamente quando o volume de águas do Xingu diminui. É a estação em que extensas praias de areia branca e dourada emergem das águas cristalinas transformando a região numa paisagem deslumbrante.


Mas os barrageiros não se deixam impressionar pela beleza exótica do Xingu. Já baixaram a sentença e fim de papo. O rio tem que ser sacrificado! É o preço a pagar! Outras barragens serão necessárias e estão programadas! Para adiantar o serviço, a Eletrobrás já dispõe de todo o “inventário” do Xingu com o respectivo mapa que prevê os barramentos e as áreas alagadas até acima da cidade de São Félix do Xingu. Parece tratar-se de estudos clandestinos, pois não são acessíveis ou revelados ao público, algo que deve estar levando o carimbo “matéria altamente confidencial” ou “segredo de Estado”. Por que todo esse sigilo?


No mesmo dia 3 de junho de 2007 um cacique Kayapó subiu num caminhão estacionado na avenida que margeia o Xingu, pegou o microfone e indagou gritando: “O que será de nossas crianças?” e acrescentou: “Não permitimos que as sepulturas de nossos ancestrais vão para o fundo!”. Enquanto empresários e comerciantes defendem Belo Monte na acalentada esperança de “chuvas de dinheiro” desabando sobre Altamira e não se preocupam com as consequências perniciosas para a vida de milhares de pessoas - mormente a população das baixadas que terá suas casas e propriedades alagadas, enquanto os membros desse consórcio empresarial abertamente demonstram que não lhes causa nenhuma inquietação se áreas indígenas demarcadas e homologadas são alagadas e o povo ribeirinho prejudicado - enquanto essa gente que em sua grande maioria veio de outros estados não tem nenhuma dor de consciência diante de um programado desastre ecológico irreversível, um índio, até hoje considerado um supérfluo resíduo da idade da pedra lascada, esse índio discriminado e tratado com desdém ou desprezo, é quem dá uma lição a toda a sociedade. Esse consórcio “comercial, industrial e agropastoril” só pensa em si. Não mantém laços nem com o passado, nem os estabelece com as futuras gerações, não se relaciona nem com quem vivia antes nem com quem vem depois. É uma associação de gente imediatista, interesseira e egoísta que aposta apenas em lucros fabulosos e declara guerra a quem tiver a petulância de se opor a sua ambição e ganância que não respeita nada e ninguém.


De repente, um índio chama a atenção para o direito das futuras gerações que também querem viver e estabelece ainda uma ponte com os antepassados, de quem herdamos este mundo que Deus criou. O índio teve a coragem de alertar para as consequências nefastas de um projeto megalomaníaco. À beira do rio, indígenas e não-indígenas se deram as mãos para selar o pacto de lutar contra a destruição do rio e da vida: Xingu Vivo para Sempre!


Em 1989 os índios se manifestaram, em 2007 insistiram de novo num grande encontro e mostramo-nos sensíveis ao pedido de todos os povos indígenas da bacia do Xingu.


Por que representantes da Eletrobrás ou Eletronorte nunca passaram por uma única aldeia para ouvir os índios a respeito de Belo Monte? Por que não pediram ajuda de quem realmente entende do mundo Kayapó para manter contatos com esses povos que são os primeiros a habitar esta terra? Por que essa discriminação, exclusão, marginalização dos povos autóctones? Por que?


Nas audiências chamadas “públicas” não se fala a verdade nem existe real possibilidade para o povo manifestar as suas dúvidas, fazer indagações e apresentar críticas. Essas audiências são apenas parte de um ritual em que os enviados da Eletrobrás ou do governo recitam o rosário de vantagens e benefícios. Só vantagens! Só benefícios! Parece terminantemente proibido criar no povo a sensação de que possa haver alguma sequela negativa ou algum dano irreparável. Se alguém se atrever em insistir e opor-se ao discurso oficial, a resposta repetida até criar náuseas é e será sempre: "É o preço a ser pago pelo progresso!" "É a exigência do desenvolvimento".


Instados a explicar o que entendem por desenvolvimento e progresso, recusam-se a responder. Dizem que não não vieram para discutir questões “ideológicas”. Fato é que a Eletrobrás sabe o que convém à sociedade, não ao zé-povinho. Causa realmente espécie a repetição de slogans, chavões pré-fabricados não com a intenção de esclarecer, mas de cooptar.


Veja-se o caso da índia Xipaia que está sendo aplaudida pelo pessoal do Consórcio e filmada afirmando que está a favor de Belo Monte, porque "o índio está no escuro". Sei quem é essa senhora. Ela mora há décadas na cidade e há luz na casa dela desde que a energia elétrica chegou a Altamira. “Cimi não dá dinheiro! Dom Erwin não dá dinheiro! Eletronorte dá dinheiro, paga conta! Por isso somos a favor de Belo Monte!” são frases que foram ouvidas na aldeia de determinado grupo que se distanciou dos outros povos indígenas do Xingu e não participou mais de nenhum evento. Que maneira mais esdrúxula de defender a "UHE Belo Monte", cooptando índios menos avisados e ainda acenando com vantagens financeiras aos que prometem defender o projeto.


Obcecado pela idéia de acelerar o crescimento da economia, o próprio presidente Lula identificou como "entraves" a esta medida a questão dos índios, dos quilombolas, dos ambientalistas e até do Ministério Público. Considerou ainda "penduricalhos" os artigos da legislação ambiental pois estes parâmetros legais estariam travando o desenvolvimento do país. Por isso a ordem é de desconsiderar ou, pelo menos, não dar tanta importância a impactos sociais e ambientais. Caso contrário, o país estaria condenado à estagnação.


Mas, já que são exigidos estudos preliminares no caso de uma hidrelétrica, o governo encarrega os primeiros interessados no projeto, os grandes empreendedores, de providenciar os estudos de viabilidade ou de impacto ambiental e social. Terão a seu dispor cientistas de sua inteira confiança que na mais cega obediência aos ditames superiores corroborarão a tese que já é definida antes do estudo: o impacto ambiental e social será mínimo ou praticamente nulo. Alega-se: “O Brasil não pode esperar!” Ou alguém pensa que uma dessas empresas esteja interessada em apontar impactos ou danos sociais e ambientais? Isso equivaleria a cortar o galho em que estão sentadas.


A pergunta chave é: A quem mesmo interessa Belo Monte? Ao Brasil? Vai melhorar o padrão de vida dos paraenses, dos xinguaras, do povo de Altamira, Vitória do Xingu, Souzel, Anapu, da Transamazônica, do Baixo Xingu? A energia, a quem será destinada? Todos sabemos que serão mais uma vez beneficiadas as multinacionais que vivem às custas do Brasil com todas as mordomias fiscais e facilidades energéticas.

O preço da energia para a família brasileira é escandaloso, é exorbitante, mas as empresas transnacionais contam com a benevolência magnânima dos sucessivos governos. O Pará, a Amazônia é considerada mera “província” energética, mineral, madeireira, última fronteira agrícola... Nunca saiu dessa categoria de “província”. A metrópole, o centro nevrálgico das decisões e deliberações, sempre se encontra alhures! Pouco interessa à metrópole se os povos da “província” passam bem ou vão de mal a pior. Algumas migalhas sempre caem, mais por descuido do que por amor aos pobres.


E os nossos políticos, em vez de questionar esse sistema iníquo, de criticar estruturas prejudiciais aos povos da Amazônia, de exigir direitos e “royalties”, aplaudem de pé e não hesitam em apelar até para a terminologia teológica quando falam em “salvação”, “redenção” da região, do Pará e da Amazônia. Infelizmente nada entendem da máxima do grande Santo Tomás de Aquino: “Gratia supponit naturam” (a graça pressupõe a natureza). No contexto da Amazônia, jamais haverá redenção se a criação for arrasada, destruída, aniquilada. Aí só vai sobrar a desgraça, o caos, o apocalipse.


Xingu Vivo para Sempre

No dia 19 de maio de 2008 tive o privilégio de fazer a abertura do encontro Xingu Vivo para Sempre no Ginásio Poliesportivo de Altamira. Mais de 600 indígenas, mulheres, homens e crianças, entraram solenemente no recinto, cantando e dançando, erguendo suas lanças, bordunas e facões. Quem não se emocionou quando os índios Kayapó cantaram o Hino Nacional em sua língua materna! A platéia aplaudiu entusiasmada.


Apresentei todos os caciques das 24 etnias presentes e saudamos os outros participantes do evento chamando-os por município. O ar foi festivo, animado, algo excepcional, pois não é todo dia que se vê tantos indígenas, pintados segundo suas tradições, dançando de acordo com os seus ritos milenares e cantando num idioma ancestral enquanto se movimentam num ritmo tão peculiar. Volta e meia, uma ou um Kayapó levanta para fazer sua dança individual erguendo um facão ou mostrando borduna e lança, os homens com seus barítonos volumosos e fortes, as mulheres com vozes elevadas, incisivas, às vezes até estridentes. A beleza exótica das expressões culturais comove e impressiona. A juventude, presente nas arquibancadas, vibra com as danças e aplaude com prolongadas salvas de palmas.


Na manhã do segundo dia continuou a apresentação. Faz parte do ritual indígena que cada cacique fale, mesmo que repita argumentos ou opiniões anteriormente já expressos por um parente. Aliás, todos se entendem como parentes. A procedência geográfica não conta, nem sequer a etnia ou o tronco linguístico a que pertencem. Todos se tratam de “õbikwa”, familiares! Se um sofre ou é agredido, todos se sentem atacados. Quando se apresentam, falam primeiro em sua língua materna e depois traduzem, eles mesmos, a fala para o português. Uns tem mais facilidade de expressar-se em português, outros não conseguem fazê-lo de modo correto.


Percebe-se a sua alegria, mas muitas vezes também a angustia ou indignação por causa de alguma decisão do governo contrária a eles ou do avanço de latifundiários, mineradoras, madeireiras, garimpeiros para as terras habitadas por eles desde tempos imemoriais. São muito sensíveis a qualquer falta de consideração da parte da sociedade envolvente. Não ocultam a sua decepção. “Já estamos cansados de ouvir e não ser ouvidos. Já estamos cansados de escutar ameaças de construção de barragens na volta grande do Rio Xingu. Não estamos só defendendo o rio Xingu, mas os rios da Amazônia: moradia dos povos indígenas” reclama um dos caciques.


Debates e o incidente

Ao término das apresentações foi composta a mesa de trabalho para os debates. Foram chamados o professor Oswaldo Sevá Filho, da Universidade de Campinas (Unicamp); o engenheiro Paulo Fernando Viana Rezende, da Eletrobrás; Roquivan Alves da Silva, do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB); Jean Pierre Leroy, da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e Glenn Switkes, diretor do Programa Latino-americano do International Rivers Network (IRD).


Oswaldo Sevá é conhecido nosso e dos indígenas. Veio para mais uma vez alertar sobre as consequências dos projetos hidrelétricos no rio Xingu. Foi ele quem organizou o livro Tenotã-Mo, lançado em 11 de agosto de 2005, uma coletânea de artigos de especialistas de diversas áreas que pretendia provocar um amplo debate sobre as hidrelétricas na Amazônia. Fui convidado a escrever o prefácio para este livro. Para nossa total decepção, a Eletrobrás nunca respondeu às indagações e críticas da parte do mundo científico. Percebe-se nitidamente a arrogância de alguns órgãos do governo. Nós apelamos para argumentos, eles para o “poder”, ostensiva e cinicamente manifestado.


Entrei no ginásio já no final da palestra do professor Oswaldo Sevá. Chegou a vez do representante da Eletrobrás, o engenheiro Paulo Rezende. Tive a impressão de que não encontrou tempo para se preparar. Assim optou por uma sessão “Power Point” como a Eletrobrás costuma fazer quando é solicitada por prefeitos, vereadores, comerciantes e empresários. Na tela apareceram números e estatítiscas, dificilmente identificáveis por causa da claridade do ambiente. A platéia começou a ficar inquieta e reagiu quando o engenheiro desqualificou o professor Oswaldo Sevá, chamando-o de “desatualizado”. As vaias se tornaram cada vez mais incisivas. Falei para a professora Mônica sentada ao meu lado: “Por que esse homem não pára, com todas essas vaias?”. Pareciam antes estimular o engenheiro. Alteou a sua voz, elevando-a a um tom provocador.


O engenheiro cumpriu seu papel dentro do ritual previsto. Nada de admitir que o projeto possa trazer também consequencias adversas, irreversíveis. Aulas de pedagogia não devem constar da grade curricular de uma faculdade de engenharia. Assim o engenheiro não teve nenhum preparo para lidar com situações diferentes das que ele conhece no âmbito empresarial. Não conseguiu envolver a platéia, de modo especial os indígenas presentes. Perdeu as estribeiras e apelou para a arrogância. Por que não fez uma exposição mais simples para todo mundo entender? Por que não dividiu sua palestra em duas partes? Poderia, se assim o quisesse, falar primeiro das vantagens e dos benefícios que Belo Monte pode trazer. Em seguida abordaria com sinceridade e simplicidade as desvantagens, os prejuízos que, sem dúvida, a hidrelétrica irá causar. Mas nada disso aconteceu. Faltava franqueza e imparcialidade. O engenheiro transmitiu à platéia a sua convicção de que, haja oposição ou não, Belo Monte vai sair de qualquer jeito!


Quando após a palestra do engenheiro, o representante do Movimento dos Atingidos por Barragens, iniciou sua fala dizendo que os índios irão defender o Xingu para protegê-lo, ressoou de repente pelo ginásio um terrível grito de guerra. Os índios se levantaram e ergueram bordunas e facões e, em seguida, iniciaram uma dança movimentando-se em direção ao engenheiro. Vi os índios gesticular com facões e bordunas. Simbolizaram um ataque. Do lugar, onde eu estava, não pude observar que um dos fações resvalou no braço do engenheiro, ferindo-o. Quando consegui ficar mais próximo, percebi o corte no braço direito do engenheiro. Vi também como ele derramou toda uma garrafa de água mineral sobre o corte que sofreu. A intenção que teve, foi sem dúvida a de limpar a ferida, mas o resultado foi uma imensa poça d’água misturada com sangue que causou a tétrica impressão de que alguém havia sido esquartejado ou guilhotinado naquele mesmo instante. Inúmeras vezes esta mesma cena foi repetida nas reportagens de televisão. Sangue espalhada por toda parte. O engenheiro foi encaminhado para o hospital. Levou seis pontos e recebeu alta. Padre Renato Trevisan que tem uma larga experiência com o povo Kayapó, além de falar muito bem seu idioma, solicitou a um cacique que apaziguasse na língua Kayapó os espíritos excitados. O cacique pegou prontamente o microfone e falou a seu povo.


Nós, da coordenação e responsáveis pelo evento, ficamos espantados, muito aflitos e angustiados ao extremo. Imaginávamos logo a repercussão do acidente nos meios de comunicação. Havia gente nossa chorando convulsivamente. Ninguém se conformara com o acontecido. Tudo estava correndo tão bem, sem sobressaltos. E agora?


Afirmo com toda a ênfase e convicção que o corte com o facão que o engenheiro sofreu foi acidental. Muito lamentável, sem dúvida, mas jamais foi tentativa de homicídio, pois se os índios quisessem matar o engenheiro não o teriam atingido apenas no braço. Aliás, o próprio engenheiro em entrevista gravada para o programa “O Fantástico” da TV-Globo admitiu que foi um acidente. Repúdio e rejeito por uma questão de consciência a afirmação de que a agressão foi premeditada ou programada. São as forças antiindígenas que mais uma vez vêm à tona e agora se deleitam no macabro prazer de sustentar essa tese absurda.

A coordenação do evento veio imediatamente a público e falou do incidente lastimável. Redigimos uma nota em que lamentamos profundamente o ocorrido. Fui procurado por jornalistas e dei várias entrevistas a diversos canais de televisão. Mesmo assim, parte da mídia optou pela divulgação sensacionalista dos fatos o que engendrou todo tipo de comentário ao longo dos dias e semanas subsequentes. Condenaram sumariamente a Prelazia do Xingu e o seu bispo e as outras entidades coordenadoras do evento.


Pensávamos por alguns momentos até em encerrar o encontro, julgando que não houvesse mais clima para a continuação, mas, finalmente, decidimos cancelar apenas a passeata pelas ruas da cidade de Altamira e substitui-la por uma manifestação à beira do rio Xingu.


No dia 23 de maio representantes dos povos indígenas e gente que vive ao longo do Xingu e seus afluentes, gente do campo e da cidade e representantes dos movimentos sociais se deram mais uma vez as mãos à beira do rio Xingu. Mais uma vez os índios discursaram e dançaram. As mulheres com as crianças entraram n’água para demonstrar como amam o rio e como dependem dele.


Acabou o encontro Xingu Vivo para Sempre mas não acabou a luta em defesa desse rio maravilhoso e dos povos do Xingu. Foi lido o documento final em que os índios fazem questão de manifestar-se como “cidadãos e cidadãs brasileiras”. “Vimos a público comunicar a nossa decisão de fazer valer o nosso direito e o de nossos filhos e netos a viver com dignidade, manter nossos lares e territórios, nossas culturas e formas de vida, honrando também nossos antepassados, que nos entregaram um ambiente equilibrado. Não admitiremos a construção de barragens no Xingu e seus afluentes, grandes ou pequenas, e continuaremos lutando contra o enraizamento de um modelo de desenvolvimento socialmente injusto e ambientalmente degradante, hoje representado pelo avanço da grilagem de terras públicas, pela instalação de madeireiras ilegais, pelo garimpo clandestino que mata nossos rios, pela ampliação das monoculturas e da pecuária extensiva que desmatam nossas florestas”.


“Queremos o Xingu vivo para sempre!”



[1] Por exemplo, O Liberal” em sua edição de 26 de maio de 2008


Clarissa Tavares
Cimi - Assessoria de Comunicação
(61) 2106 1650
www.cimi.org.br

sábado, junho 28, 2008

Paracer favorável para a criação da Universidade Federal do Oeste do Pará

COMISSÃO DE EDUCAÇÃO E CULTURA
PROJETO DE LEI No 2.879, DE 2008

Dispõe sobre a criação da Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA, por desmembramento da Universidade Federal do Pará – UFPA e da Universidade Federal Rural da Amazônia – UFRA, e dá outras providências.


Autor: Poder Executivo
Relator: Deputado LIRA MAIA


I - RELATÓRIO


O Projeto de Lei nº 2.879 de 2008, de autoria do Poder Executivo, propõe a criação da Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA, por desmembramento da Universidade Federal do Pará – UFPA, criada pela Lei nº 3.191, de 2 de julho de 1957, e da Universidade Federal Rural da Amazônia – UFRA, criada pela Lei nº 10.611, de 23 de dezembro de 2002, com natureza jurídica de autarquia, vinculada ao Ministério da Educação, e sede e foro no Município de Santarém, no Estado do Pará.

A partir dos cursos já oferecidos nos Campus da UFPA em Santarém e da Unidade Descentralizada da UFRA/Tapajós, A UFOPA terá por objetivo ministrar ensino superior, desenvolver pesquisas nas diversas áreas do conhecimento e promover a extensão universitária da região Oeste do Pará.

Os corpos docente e discente dos campus de Santarém e da UFRA/Tapajós, serão automaticamente absorvidos na nova estrutura da UFOPA a ser criada.

A proposição trata ainda da estrutura do novo quadro de pessoal, através da criação de: quatrocentos e trinta e dois cargos efetivos de professor da carreira de magistério superior; cento e vinte cargos efetivos técnico-administrativos de nível superior; duzentos e doze cargos efetivos técnico-administrativos de nível médio; quarenta e um cargos de direção (CD); cento e setenta funções gratificadas (FG); e dos cargos de Reitor e de Vice-Reitor.

A criação da UFOPA, de acordo com o Poder Executivo, possibilitará um novo e poderoso impulso para a modernização e para o desenvolvimento sustentável daquela importante região do Estado do Pará, historicamente marcada pelo extrativismo vegetal e mineral e pelo baixo índice de desenvolvimento humano, resgatando um rico acervo de tradições culturais.

O Executivo justifica ainda, que a expansão da rede de ensino superior e a ampliação do investimento em ciência e tecnologia irão promover a inclusão social, constituindo objetivos centrais do governo federal para o desenvolvimento e para interiorização do Ensino Superior Público no País.

Do ponto de vista orçamentário, o Executivo argumenta que tanto a implantação da UFOPA como o provimento dos cargos do seu quadro de pessoal e a compra dos equipamentos necessários ao seu funcionamento estão condicionados à existência prévia de dotação orçamentária, conforme disposto no § 1º do art. 169 da Constituição Federal, porém, por iniciativa deste parlamentar, foi incluído no PPA/2008, as metas para implantação da UFOPA.

Segundo o Executivo, o modelo institucional e acadêmico multicampi, a ser adotado na implantação da UFOPA, permitirá a exploração do potencial sócio-ambiental de cada subespaço da região oeste do Estado do Pará, servindo, ao mesmo tempo, de pólo integrador desses subterritórios.

A presente proposição foi aprovada sem alterações pela Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados.

Cabe a essa Comissão de Educação pronunciar-se quanto ao mérito da presente proposição.

No prazo regimental não foram apresentadas emendas nesta Comissão.

É o relatório.



II - VOTO DO RELATOR


No ano de 1957, o Presidente Juscelino Kubitschek sancionou no Teatro da Paz em Belém/PA, a Lei 3.191/57, criando a Universidade Federal do Pará agregando sete faculdades então existentes no Estado à época.

Passados mais de 50 anos, a UFPA tornou-se referência nacional, principalmente, devido à qualidade do ensino oferecido. Seu projeto de expansão, implantado em 1986, incluiu a criação de diversas unidades descentralizadas que, embora mantenha a qualidade do ensino, não consegue atender a enorme demanda do Interior do Estado.

Somente no Campus de Santarém, são disponibilizados os cursos de Letras, Matemática, História, Geografia, Pedagogia, Biologia, Processamento de Dados, Direito e Física Ambiental e, mais recentemente, foram instaladas as unidades descentralizadas nos Municípios de Itaituba, Oriximiná, Monte Alegre, Óbidos, Alenquer, Curuá e Almeirim.

O Campus Universitário de Santarém conta com oito faculdades, mais de 2000 alunos, 65 professores efetivos da carreira do magistério de nível superior, onde mais de 80% destes possuem pós-graduação em nível de mestrado e/ou doutorado. O corpo técnico é composto de 23 pessoas altamente qualificadas.

Já a Universidade Federal Rural da Amazônia – UFRA, sucessora da Escola de Agronomia (1951-1972) e da Faculdade de Ciências Agrárias do Pará (1974-2002), vem ao longo dos anos, dando uma enorme contribuição para o desenvolvimento regional, em especial da Amazônia, formando recursos humanos voltados às Ciências Agrárias e ao desenvolvimento sustentável da região amazônica, dos quais já ocupam cargos de destaque no cenário político nacional.

São incontestáveis os resultados dos trabalhos realizados pela UFPA e pela UFRA no interior do Pará durante suas existências. Estes trabalhos possibilitam que o Governo do Estado implantasse o ensino médio regular em todas as sedes dos municípios paraenses expandindo o ensino médio na modalidade modular para centenas de comunidades rurais nas diferentes regiões do Pará. Só no Município de Santarém, são 40 (quarenta) comunidades rurais com ensino médio na modalidade modular.

Em razão da interiorização do ensino médio no Estado do Pará, os projetos de expansão da UFPA e da UFRA, não têm sido suficientes para atender a demanda pelo ensino superior no interior do Estado.

Fica latente a necessidade de criação de mais uma Universidade Federal no Estado do Pará, no caso, a Universidade Federal do Oeste do Pará.

Ressalto que essa preocupação está diretamente vinculada ao desenvolvimento sócio-econômico do Estado e, em 2006, o Senador Flexa Ribeiro apresentou no Senado o PLS nº 213/06 que “autoriza o poder executivo a criar a Universidade Federal do Oeste do Pará, com sede no Município de Santarém, por desmembramento da Universidade Federal do Pará”. O projeto foi aprovado no Senado Federal e seguiu para a Câmara dos Deputados.

Na Câmara dos Deputados, tive a honra de ser o relator nesta Comissão de Educação, onde apresentamos um substitutivo transformando o projeto em indicação ao poder executivo.

Em fevereiro de 2008, o governo federal encaminhou para esta Casa, o presente Projeto de Lei 2.879/08, que “dispõe sobre a criação da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, por desmembramento da Universidade Federal do Pará - UFPA e da Universidade Federal Rural da Amazônia - UFRA, e dá outras providências”.

A criação da Universidade Federal do Oeste do Pará representa a importância de uma universidade pública no interior da Amazônia, como instrumento poderoso que ajudará a construir as bases sólidas de um processo crescente de desenvolvimento regional sustentável, uma imperiosa necessidade gerada pelo acelerado crescimento da população, industrialização, globalização e a conseqüente degradação dos recursos naturais na região.

A implantação da Universidade aumentará os investimentos federais na região, refletindo no seu desenvolvimento social, econômico e cultural assegurando inclusive, os mais diversos investimentos em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias voltadas diretamente para a região amazônica.

Para os Municípios da região do Oeste do Pará – Alenquer, Almeirim, Altamira, Aveiro, Belterra, Brasil Novo, Curuá, Faro, Itaituba, Jacareacanga, Juruti, Medicilândia, Monte Alegre, Novo Progresso, Óbidos, Oriximiná, Placas, Porto de Moz, Prainha, Rurópolis, Santarém, Terra Santa, Trairão, Uruará e Vitória do Xingu – o benefício é evidente, com orçamento próprio, a Universidade Federal do Oeste do Pará, facilitará a implantação de novas unidades descentralizadas e quem sabe num futuro próximo, possamos ter uma unidade em cada Município.

A instalação da Universidade do Oeste do Pará contribuirá, como disse acima, na dinamização da economia regional com um volume significativo de serviços que serão demandados gerando um número significativo de novos postos de trabalho e emprego diretos e indiretos intensivos em ciência e tecnologia e na economia local em geral.

Mais importante do que isso, essa Universidade vai promover uma verdadeira revolução na educação básica, criando e ampliando as oportunidades para os jovens do Oeste do Pará, ajudando a produzir e acumular conhecimento científico e participando efetivamente da construção de uma sociedade mais justa e mais competitiva. Mais ainda: formará a base intelectual da nossa região e do futuro Estado do Tapajós.

Nossos jovens não precisarão mais sair de nossa região em busca de oportunidades de estudo e principalmente, com o desenvolvimento gerado, em busca de oportunidades de emprego. Iremos formar nossos próprios profissionais com boa formação e capacitados para enfrentar os desafios que o mundo moderno exige.
Ainda quanto à análise do mérito, o objetivo do Projeto de Lei nº 2.879, de 2008, justifica os argumentos invocados para a criação da UFOPA, ensejando a criação de mais de quarenta novos cursos de graduação e o atendimento de mais de dez mil setecentos alunos nos cursos de graduação, mestrado e doutorado a serem oferecidos pela nova Universidade Federal, possibilitando a formação de uma mão de obra local altamente especializada e em quantidade suficiente para alavancar o desenvolvimento de toda a região Oeste do Pará, gerando novas oportunidades para àquela população.

Não poderia deixar de expressar que tradicionalmente, devido à vontade claramente expressada pela população da região oeste do Estado do Pará, o nome da Universidade seria UNIOESPA, mas, para não gerar nenhum entrave político que possa resultar na demora da tramitação do Projeto em tela, não irei propor nenhuma alteração no texto oriundo do Poder Executivo, porém, deixo manifestada esta vontade da população do Oeste do Pará quanto à sigla da Universidade a ser criada.
Por fim, a criação da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, por desmembramento da Universidade Federal do Pará e da Universidade Federal Rural da Amazônia, resgata um compromisso histórico que o governo está a dever com a população e principalmente, com a juventude da região Oeste do meu Estado.

Face do exposto, voto, no mérito, pela aprovação do Projeto de Lei nº 2.879, de 2008.
Sala da Comissão, em de 2008.

Deputado Lira Maia

Relator

quinta-feira, junho 05, 2008

Paulo Pereira da Silva - Culpa de Serra e Kassab

Entrevista concedida à Leandro Colon - Da equipe do jornal Correio Braziliense (05/06/2008)


Deputado diz que a disputa em São Paulo é o motivo das denúncias contra ele e ainda ameaça o PSDB


Alvo de processo por quebra de decoro na Câmara, o deputado Paulo Pereira da Silva (PDT-SP) enfim revela quais, na sua opinião, seriam os responsáveis pela pressão que vem sofrendo: grupos do governador de São Paulo, José Serra (PSDB), e do prefeito da capital paulista, Gilberto Kassab (DEM). Foi o que ele disse ontem em entrevista ao Correio.


Paulinho pode perder o mandato por causa das acusações de ligação com o esquema de desvio de dinheiro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Para a Polícia Federal, está clara a participação dele no episódio. Ele teria recebido dinheiro da quadrilha que cobrava propina para liberar empréstimos do banco.


Apesar dos indícios da polícia, sua linha de defesa é dizer que seu nome foi usado indevidamente pelos envolvidos no esquema. Ele garante que o caso tomou essa proporção por causa de perseguição política originada numa disputa em São Paulo. Paulinho afirma que sofreu uma investigação clandestina da Polícia Civil paulista em 2007, logo depois de receber em casa o prefeito Kassab para tratar de aliança política. E deixa um mistério no ar. “E não estou querendo falar agora. Se eu falar, cai a República de São Paulo.”


Paulinho fez em18 de outubro uma denúncia ao Ministério Público sobre a ação da Polícia Civil. Ele entregou à reportagem a íntegra desse relato. Segundo o MP, o caso está sendo apurado sob sigilo. E Paulinho confirma: vai se afastar da presidência do diretório do PDT em São Paulo.
“Não estou querendo falar agora. Se eu falar, cai a República de São Paulo”


A PF diz que há uma “clara” participação do senhor no esquema do BNDES. Um ex-assessor seu, João Pedro Moura, foi preso. O senhor falou com o advogado Ricardo Tosto dias depois da Operação Santa Tereza. A polícia cita cheques. Os nomes P.A. e Paulinho aparecem nas escutas. Um e-mail interceptado diz que P.A. é o senhor. Não fica difícil sair dessa cadeia de informações?
O que tem nisso tudo? Uma ligação de uma pessoa, João Pedro, para o Marcos Mantovani (dono da Progus, empresa ligada ao esquema). Essa é a única verdade na história. Ele fala com outra pessoa e cita meu nome. O próprio João Pedro e o Mantovani disseram que usaram meu nome indevidamente.


O João Pedro esteve na Câmara por 39 vezes, sendo 12 vezes no seu gabinete. A PF diz que ele usou um cartão de visitas do seu gabinete. O senhor sabia disso?
Claro que não. Ele inventou o cartão. Falsificou um cartão meu para se apresentar como um assessor.


O senhor tem dito que é vítima de perseguição. Quem faria isso e por que?
Passei a ser o deputado que articula as centrais sindicais. Isso incomoda empresários e políticos.


Da base do governo ou da oposição?
Tem alguns da base, mas é a oposição. Eles me consideram um traidor.


Em São Paulo, o senhor tinha uma ligação próxima com PSDB, hoje se afastou. A investigação da PF foi feita lá. Na sua opinião, o PSDB paulista pode estar por trás disso? São eles que o chamam de traidor?
Eu acho que sim. Mas vou dizer mais. Eu cometi uma falha (de não ter denunciado antes à imprensa) nesse processo todo. Começou com uma investigação sobre mim em São Paulo em setembro no ano passado, achei que era uma tentativa de seqüestro da minha filha. Ela me ligou e disse ‘pai, estou sendo seguida’. E eu falei para ela ir a uma delegacia. Isso foi por volta de setembro. Pensei que fosse seqüestro. Eu pedi para o coronel da Polícia Militar Wilson Consani Júnior verificar. Passaram uns dias, e ele me procurou. E disse: ‘Nós constatamos que é a Polícia Civil’. A polícia tinha uma casa alugada ali perto da sede do PDT, na Vila Mariana. Os caras se identificaram e disseram que quem os mandou foi o alto comando da Polícia Civil. E, para me prevenir, fui ao Ministério Público e dei um depoimento no dia 18 de outubro. E procurei o Lupi (ministro do Trabalho, Carlos Lupi, então presidente do PDT). Ele pediu para eu não denunciar. Não tinha como não falar que era o Serra, a Polícia Civil.


Por que o PSDB teria feito isso?
Nos mantivemos uma independência do PDT em São Paulo. Não compusemos com o Serra para governador, fui candidato a prefeito. Agora eles faziam questão de contar com nosso partido.


Há um dedo do governo estadual nessa história então?
Alguém do governo está nisso. Tentaram o tempo todo controlar o nosso partido. Por isso, enfrentei para retirá-lo da base do Kassab. O Kassab esteve na minha casa duas vezes para dizer que não era candidato, mas queria manter uma boa relação conosco. Eu disse que nossa tendência era ter candidato. Depois disso, teve a perseguição em São Paulo.


E qual a relação disso com as recentes denúncias sobre o BNDES?
Se eu tivesse denunciado (a perseguição de Kassab e Serra), eu falaria tudo o que aconteceu (as conversas com prefeito). E não estou querendo falar agora. Se eu falar, cai a República de São Paulo. Mas, se eu tivesse denunciado, tinha me prevenido dos supostos envolvimentos nessas coisas.


Num telefonema para o Tosto, o senhor fala em pedir esclarecimentos ao presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, e até mesmo em chamar o ministro Tarso Genro para depor. O senhor não foi longe demais? Não foi intimidação?
O que eu falei foi normal. O Ricardo Tosto saiu da PF e foi para casa dele, e eu liguei para dar solidariedade. Ele me disse o que estava acontecendo. Aí eu disse que eu iria falar com as pessoas. O “mexer os pauzinhos” era isso.

quinta-feira, maio 22, 2008

O fator Carlos Minc

Minc amplia crise no governo

Correio Braziliense

Novo ministro aumenta conflito entre ambientalistas e integrantes das pastas da Agricultura, de Assuntos Estratégicos, governadores e militares. Idéia de criar guarda nacional é criticada

``Não tenho a pretensão de ser o cara mimado que vai impor o tempo todo as convicções. tenho de tratar com rigor o que foi decidido``
Carlos Minc, novo ministro do Meio Ambiente

A chegada de Carlos Minc para substituir Marina Silva na pasta do Meio Ambiente aprofundou a crise entre a área ambiental do governo, o ministério da Agricultura, chefiado por Reinhold Stephanes, importantes aliados do Palácio do Planalto no Congresso e governadores, como o do Mato Grosso, Blairo Maggi. Com seu estilo histriônico de anunciar medidas antes mesmo de tomar posse, Minc começou a ser bombardeado. Ontem, o ministro de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, classificou de “definição prematura” a idéia do novo ministro de criar uma guarda nacional para fiscalizar a Amazônia. Mangabeira foi escolhido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para coordenar o Plano Amazônia Sustentável (PAS), decisão que provocou a demissão de Marina Silva.

As Forças Armadas também não apoiam a idéia de Minc. Os militares alegam que não têm condições de tratar dos assuntos relativos à segurança nacional na Amazônia, muito menos formar uma guarda nacional para fiscalizar a floresta. O governador Blairo Maggi ameaçou boicotar a idéia e disse que não vai ceder policiais da PM de Mato Grosso para a força nacional ambiental. Com tantas resistências, Minc deixou de falar na idéia. O futuro ministro do Meio Ambiente e o governador Maggi se escalaram como principais adversários entre o agronegócio e os ambientalistas. Na Esplanada, o governador conta com o apoio do ministro da Agricultura.

Stephanes já escolheu o lado da briga. Reclamou publicamente da ampliação do número de municípios das regiões onde foi constatado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) um aumento do desmatamento no segundo semestre do ano passado. As fazendas localizadas nessas cidades — concentradas nos estados do Pará e Mato Grosso — só terão acesso ao crédito rural se provarem que não realizaram desmatamento ilegal. Em oposição ao ministro da Agricultura, Minc apóia a medida definida pelo Conselho Monetário Nacional desde a gestão Marina Silva.

O corte de crédito para desmatadores ilegais vai vigorar a partir de primeiro de junho. Minc revelou que alguns governadores, principalmente da Região Centro Oeste, estão pressionando o presidente Lula para flexibilizar a norma do CMN e liberar o crédito para um grupo de agricultores que descumpriram apenas algumas regras de preservação ambiental, mas não são considerados desmatadores ilegais contumazes. Minc resiste à mudança e já avisou: “O governo não vai mudar”.

Metamorfose
Mas nem todas as brigas Minc vai comprar. O novo ministro do Meio Ambiente toma posse na terça-feira rasgando uma das mais importantes bandeiras dos militantes ambientalistas brasileiros: o impedimento da construção da terceira usina nuclear em Angra dos Reis, no litoral sul do Rio de Janeiro. A licença ambiental solicitada pela Nuclebrás para a reativação da usina depende de parecer do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), órgão subalterno a Minc, que já sinalizou aos subordinados o que passou a pensar sobre o tema: “Sou um adversário do uso da energia nuclear, mas agora sou do governo”.

E nem todos os ministros Minc vai encarar. Uma das mais empolgadas defensoras da construção de Angra 3 é a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Assim como Marina Silva, o novo ministro do Meio Ambiente sempre foi contra a opção de energia nuclear. Mas ele não tem força política para enfrentar, ao mesmo tempo, os ruralistas amigos do presidente Lula, seus auxiliares defensores do agronegócio e a ministra mais poderosa da Esplanada e pré-candidata do Planalto à Presidência da República. E explica sua metamorfose: “Não tenho a pretensão de ser o cara mimado que vai impor o tempo todo as convicções, acho que tenho que no máximo tratar com rigor o que for decidido”.

Antes mesmo da posse, Minc não pára de criar arestas potenciais dentro do governo. Ontem ele anunciou a edição de um decreto obrigando as indústrias que utilizam matrizes fósseis a gerar um outro tipo de energia renovável para compensar a poluição principal. Segundo ele, o projeto já tem o aval do presidente Lula que, de acordo com o novo ministro, adorou a idéia. Minc ainda não tratou do assunto com o colega do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Miguel Jorge, que teme complicações na política industrial brasileira, assunto, aliás, em que Minc já avisou que vai interferir.

Conflito
Confira as polêmicas envolvendo os integrantes do governo

Crédito rural
Carlos Minc é contra a flexibilização da norma do Conselho Monetário Nacional de proibir o crédito rural para fazendeiros que desmataram ilegalmente. Reinhold Stephanes defende a alteração da norma para permitir crédito agrícola a alguns proprietários rurais que cometeram pequenas infrações ambientais.

Terra indígena
Minc defende a ampliação de terras indígenas e áreas de preservação ambiental, mas esbarra na intenção da ministra-chefe da Casa Civil de ampliar hidrelétricas na Amazônia.

Política industrial
Minc quer interferir na política industrial, exigindo que empresas adotem medidas compensatórias para minimizar a poluição. A idéia assusta a área econômica, que pretende acelerar o crescimento econômico.

Fiscalização
Minc anunciou a criação de uma guarda florestal para a Amazônia. A idéia foi desconsiderada por Mangabeira Unger, coordenador do PAS, e descartada pelos militares.

“Tesouro natural”
O ministro de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, garantiu ontem que a floresta amazônica não será a nova fronteira agrícola brasileira. “O governo Lula encara a floresta amazônica como um tesouro natural a ser preservado em benefício do Brasil e da humanidade. Não será uma fronteira agrícola”, disse o ministro que foi nomeado pelo presidente Lula como coordenador do Plano Amazônia Sustentável (PAS), motivo do pedido de demissão da ex-ministra Marina Silva.

Estratégia
Em audiência ontem na Câmara, Mangabeira Unger antecipou que o governo traçou duas estratégicas para a Região Norte: uma para a Amazônia com floresta ainda preservada e outra para a parte sem floresta, caracterizada por áreas já devastadas e regiões de cerrado. Para as regiões ainda preservadas, o ministro afirmou que a prioridade é a definição de um regime tributário em que a mata em pé tenha mais valor que a exploração da madeira ou da biodiversidade, o que inclui a adoção de tecnologias apropriadas para o manejo de florestas, a implantação de serviços ambientais avançados, a gestão comunitária e a construção de vínculos entre produção local e indústrias. (LR

sexta-feira, abril 18, 2008

Amazônia e suas conveniências

'Esquerda escocesa' não vê índio real, afirma general
Wilson Tosta


Comandante critica quem, ‘atrás de um copo de uísque 12 anos, resolve os problemas do Brasil inteiro’

Considerado um dos principais adversários da demarcação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, o comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, pediu ontem mudanças na política indigenista brasileira, que classificou de “lamentável” e “caótica”. Em palestra no Clube Militar, no centro do Rio, o general, vestindo uniforme de combate camuflado, apontou, para uma platéia de cerca de 600 pessoas - entre elas, militares da ativa -, a questão indígena como uma das “ameaças internas” à soberania brasileira na Amazônia. Também criticou o que chamou de “esquerda escocesa”, que, disse, resolve os problemas brasileiros com uísque, e encerrou com o grito de guerra das unidades da área: “Selva!”

“Sou totalmente a favor do índio”, afirmou o militar, no primeiro dia do seminário Brasil, Ameaças à sua Soberania. “Até porque não sou da esquerda escocesa, que, atrás de um copo de uísque 12 anos, aqui sentado na Avenida Atlântica, resolve os problemas do Brasil inteiro. Eu não estou na esquerda escocesa. Eu estou lá. Já visitei mais de 15 comunidades indígenas. Estou vendo o problema do índio. Ninguém está me contando como é que é o índio, não estou vendo índio no cinema, não estou vendo índio no Globo Repórter. Estou vendo índio lá, na ponta da linha, e sofrendo com o que está acontecendo.”

Para ele, o problema indígena não pode ser compreendido fora dos quadros da sociedade brasileira. “Quero me associar, para que a gente possa rever uma política que está demonstrado no terreno que não deu certo até hoje”, afirmou. “É só ir lá olhar as comunidades indígenas para ver que esta política é lamentável, para não dizer que é caótica. O que eu tenho encontrado de comunidade indígena carente de saúde, de perspectiva, voltada para o alcoolismo... Essa política indigenista tem que ser modificada. O Exército quer ser parceiro desta modificação.”

Ele lembrou que boa parte da população indígena amazônica fica em torno dos pelotões que a Força mantém na região. O militar evitou, no entanto, criticar diretamente a demarcação da Raposa Serra do Sol. “Não tomei posição contra a demarcação, coloquei um problema”, afirmou, em entrevista. “Em nenhum momento contrariei a decisão do presidente da República. A decisão está tomada e será cumprida por quem de direito.”

Heleno criticou a ausência do Estado que, diz, “permite e incentiva o descaminho e a destruição do patrimônio e favorece a ação das organizações internacionais de todo tipo” na Amazônia. Também atacou a ação de ONGs e as dificuldades impostas à entrada de brasileiros nas reservas, enquanto missionários e entidades estrangeiras se movimentam à vontade.

Ele pediu o reaparelhamento militar. “A Amazônia é hoje a nossa hipótese mais provável de emprego das Forças, é a hipótese alfa.” Uma das possibilidades externas à soberania brasileira na região, afirmou, seria o convencimento da opinião pública internacional de que o Brasil não é capaz de cuidar da Amazônia.” Na platéia, estavam pelo menos três ex-ministros do Exército: os generais Leônidas Pires, Carlos Tinoco e Zenildo de Lucena.