Jobim rebate Tarso e diz que Lei da Anistia não vai mudar
FÁBIO GUIBU/GRACILIANO ROCHA
Planalto afirma que punição a torturadores da ditadura não foi discutida no governo
Ministro da Justiça diz ter expressado visão pessoal; para o chefe da Defesa, "não existe hipótese de você rever uma situação passada"
O ministro da Defesa, Nelson Jobim, se opôs ontem frontalmente à idéia defendida por seu colega de ministério Tarso Genro (Justiça), de modificar a Lei da Anistia para permitir a punição de torturadores e assassinos da ditadura militar. "Não haverá mudança na Lei da Anistia", declarou Jobim à Folha, após participar da cerimônia de troca de comando no CMNE (Comando Militar do Nordeste), em Recife. "A Lei da Anistia já esgotou os seus efeitos", disse. "Já foram anistiados, não existe hipótese de você rever uma situação passada." A idéia de criar uma alternativa jurídica para que a lei, de 1979, não impeça a punição de agentes públicos envolvidos em tortura e morte durante a ditadura militar (1964-1985) foi discutida anteontem, durante audiência patrocinada pelo Ministério da Justiça.
No evento, em Brasília, Tarso defendeu a tese de que não há delito político na tortura e que, quem agiu assim pode ser comparado "a qualquer outro torturador". Mas, para Jobim, a Lei da Anistia "foi auto-suficiente" e "satisfez a situação que tinha para satisfazer". E pediu: "Vamos olhar para o futuro".
Questionado sobre a possibilidade de existir uma alternativa jurídica para punir os torturadores, Jobim disse que "isso é um problema que tem que ser examinado pelo Poder Judiciário, e não pelo Executivo".
Na solenidade no CMNE, o ministro ficou ao lado do comandante do Exército, Enzo Martins Peri. Também questionado pela Folha sobre o assunto, Peri se negou a falar. "Nenhum comentário", disse.
Indagado sobre o que achava da declaração de Jobim, de que não haveria mudanças na lei, o comandante sorriu e disse: "Se o ministro falou, está falado".
No Planalto, subordinados do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentaram reduzir a defesa de punição a agentes públicos que cometeram crime de tortura a uma avaliação pessoal dos ministros Tarso e Paulo Vanucchi (Direitos Humanos).
Disseram, por exemplo, que o tema não foi discutido em reunião de coordenação, o encontro semanal de Lula com seus principais ministros em que são debatidas as questões mais relevantes do momento.
Segundo assessores e ministros ouvidos pela Folha, Lula sempre teve atitude de cautela e moderação em relação ao tema, embora reconheça que o debate "existe" e é recorrente.
Não há consenso de que o governo como um todo deva se envolver diretamente na discussão. Um dos motivos é que entre os próprios ministros há discordância sobre o tema.
Em setembro do ano passado, o lançamento do livro-relatório sobre torturas e mortes durante o regime militar abriu crise entre Planalto, Defesa e Exército. Intitulado "Direito à Memória e à Verdade", foi assumido como documento oficial pelo governo e lançado no Planalto com a presença de Lula. À época, o Exército divulgou nota condenando a hipótese de mudança na Lei da Anistia.
Sintonia
Em Porto Alegre, ainda sem saber das declarações de Jobim, Tarso afirmou ter expressado seu ponto de vista pessoal, não o do governo.
"A posição que manifestei ontem [anteontem] é uma posição minha e do Paulo Vanucchi [secretário especial de Direitos Humanos], abordando juridicamente o tema à luz do direito constitucional e das normas legais da anistia. Não é posição de governo."
Segundo o ministro, a discussão "é um debate do Estado democrático de Direito".
Colaborou LETÍCIA SANDER, da Sucursal de Brasília
Lei não precisa ser revista, diz ministro do STF
O ministro do STF Celso de Mello afirmou que a Lei da Anistia brasileira, de 1979, é "completamente diversa" das legislações de países vizinhos recentemente revogadas ou parcialmente revistas.
Para o ministro, "no caso brasileiro, os destinatários foram todos os que se enquadraram nos requisitos da lei". Ele acredita que a lei brasileira não teve a finalidade de beneficiar grupos específicos, "muito menos de privilegiar os que usurparam o poder no golpe de 1964".
Segundo Mello, a Corte Interamericana de Direitos Humanos "tem reconhecido a incompatibilidade de determinadas leis de anistia". Para ele, "são casos que não refletem o brasileiro".
O ministro explicou que, geralmente, as leis contestadas beneficiaram só os atores repressivos, como na "experiência de outros Estados latino-americanos governados por ditaduras, em que os governantes, na iminência de saírem do poder, se apressaram na autoconcessão de anistia em causa própria.
Mello relembrou o caso peruano, cuja lei foi revogada pela corte internacional. "A legislação peruana concedeu aos ditadores de então uma anistia a eles limitada. E a Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que a auto-concessão de anistia pelos próprios curadores do regime autoritário é um procedimento incompatível", disse. "Será este o caso brasileiro? A mim não parece que seja". (FELIPE SELIGMAN)
Guerrilheiros têm mais a perder, diz militar
RAPHAEL GOMIDE
O presidente do Clube Militar, general da reserva Gilberto Figueiredo, afirmou que quem tem mais a perder com a eventual revogação da Lei da Anistia são os antigos opositores da ditadura. Segundo afirmou, há arquivos judiciais relativos a crimes a eles atribuídos, enquanto provas contra torturadores não são documentais.
"Se abolirem a Lei da Anistia, quem tem mais a perder são os antigos guerrilheiros, porque os crimes que praticaram, também hediondos -seqüestros, assassinatos, tortura, terrorismo indiscriminado-, isso aí está registrado, nos anais da Justiça, arquivado. Por outro lado, o torturador... ninguém escreveu: hoje, torturei. Portanto, quem tem mais a perder são os antigos terroristas", afirmou.
Em evento do Ministério da Justiça anteontem, o titular da pasta, Tarso Genro, e o ministro Paulo Vannuchi (Direitos Humanos) defenderam que a Lei da Anistia, de 1979, não impede a punição de agentes públicos que tenham praticado tortura e assassinatos.
O tema é sensível nas Forças Armadas. As declarações provocaram a organização de um debate do Clube Militar, no Rio, na próxima quinta-feira, sobre o tema "Lei da Anistia: Alcance e Conseqüências".
Na opinião do general Figueiredo, não é possível se abolir a Lei da Anistia, "ainda mais para só um lado". Disse já ter consultado ministros do STF sobre o assunto e ter ouvido que a medida seria impossível.
"É a opinião deles [Genro e Vannuchi], não do governo, muito menos do Poder Judiciário. Quem tem de resolver isso são os tribunais. Já ouvi ministros do Supremo sobre isso e eles consideram impossível abolir a Lei da Anistia, ainda mais só para um lado", afirmou Figueiredo, que disse considerar a tortura "abominável".
Para ele e o presidente do Clube Naval, almirante José Julio Pedrosa, a iniciativa dos ministros é "política" e não vai prosperar no Judiciário. Pedrosa disse que "tem de prevalecer a lei do país, com a anistia, irrevogável", senão não há no país "tranqüilidade jurídica".
O presidente do Clube Militar atacou o PT e o governo ao comentar as reivindicações. "O ministro disse que tem de lamber as feridas. Acho que deveria pensar primeiro nas feridas deles mesmos, mais recentes, caso Celso Daniel, mensalões. Não vamos mexer em feridas quase cicatrizadas."
* Série publicado hoje na Folha de S. Paulo.
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