domingo, abril 13, 2008

Governo bisbilhoteiro

Semelhanças com a Rússia

Ugo Braga - Da equipe do Correio

Dinheiro público
Prática governista de bisbilhotar a vida de cidadãos ou grupos que lhe contrariem é comparada por analistas ouvidos pelo Correio à “ditadura constitucional” montada por Vladimir Putin na ex-URSS

Palocci e o caseiro Francenildo: poder do estado violou direito constitucional do cidadão em meio à luta política com a oposição

O caso do dossiê com gastos sigilosos da ex-primeira-dama Ruth Cardoso, elaborado dentro do Palácio do Planalto e vazado para constranger a oposição, repetiu um tipo de comportamento que analistas ouvidos pelo Correio comparam ao da Rússia, tanto a contemporânea quanto a revolucionária de 1917: a utilização do aparato estatal para esmagar grupos ou pessoas que criam embaraços ao governo. O sociólogo e geógrafo Demétrio Magnoli vê caractéristicas de “estado policial” na administração petista. O cientista político Paulo Kramer enxerga nela um viés autoritário.

O exemplo melhor acabado do Estado atropelando o direito individual se deu em março de 2006. Investigado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Bingos, o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, precisou mentir publicamente, ao negar que freqüentava uma mansão alugada no Lago Sul por um grupo de lobistas de Ribeirão Preto. Esse pessoal engendrava negociatas em meio à renegociação de contrato milionário na área de loterias entre a Caixa Econômica Federal e a multinacional Gtech. A proximidade entre Palocci e os lobistas acabou atestada por um humilde caseiro, Francenildo dos Santos Costa, que trabalhava na alegre casa do lobby e via tudo o que se passava por ali.

Para ser desacreditado como testemunha, Francenildo teve violado o sigilo bancário de uma caderneta de poupança que mantinha justamente na Caixa Econômica Federal. A conta recebera um depósito acima do normal — feito pelo pai, um empresário piauiense, como forma de manter em segredo o filho bastardo. O governo espiou a conta, o que já é crime, e ao deparar-se com a operação, concluiu tratar-se de propina paga pela oposição em troca do depoimento acusador contra o ministro da Fazenda. Os dados bancários de Francenildo vieram a público, mas o tiro saiu pela culatra. Explicado o depósito, restou a pressão da opinião pública. Palocci acabou demitido. “Aquilo foi um crime de Estado típico de regimes policiais”, analisa Magnoli, espantado.

Antes de xeretar e vazar as contas sigilosas de dona Ruth, a Casa Civil já era suspeita de outras operações com dossiês. A então diretora da Agência Nacional de Aviação Civil, Denise Abreu, só aceitou se demitir do cargo em meio à crise aérea depois de receber um lote de documentos com informações desabonadoras sobre sua vida pregressa. Era uma chantagem clara e ela, mesmo revoltada, cedeu. O assunto está sob investigação.

O ex-juiz João Carlos da Rocha Mattos, preso desde os primeiros dias do governo Lula, afirma com todas as letras que a Operação Anaconda, feita pela Polícia Federal, foi deflagrada apenas para apreender um lote de fitas que estavam em seu poder. “Eram gravações ilegais, feitas num inquérito da Polícia Civil de São Paulo. Elas comprovavam o envolvimentos de petistas ilustres no caso da morte do prefeito de Santo André, Celso Daniel”, disse ele ao Correio, três semanas atrás, no quartel da PM onde estava preso, no Centro de São Paulo.

Fábrica de dossiês
“A militância do PT não fez uma opção pela democracia representativa. Para eles, e são eles que estão ocupando os cargos da máquina pública, a democracia é tática, não é estratégica. Por isso, de vez em quando eles lançam mão de ações autoritárias, passando por cima até mesmo da legislação estabelecida”, analisa Paulo Kramer, professor do mestrado em Ciência Política da Universidade de Brasília.

O uso maciço de dossiês acomete até as relações com outros partidos. Na semana passada, o deputado Sandro Mabel (PR-GO) foi vítima de uma dessas orquestrações. Candidato à relatoria do projeto de reforma tributária, ele soube que chegara ao Ministério do Planejamento uma planilha com um levantamento de votações no Congresso. De certa forma, Mabel era acusado de votar contra os interesses do governo. “Nesse caso, erraram, sempre votei com o governo”, dizia, constrangido, num dos corredores do parlamento.

“Não tenho nenhum exemplo de um padrão de comportamento como esse em ambiente plenamente democrático”, depõe Demétrio Magnoli. “O exemplo óbvio que me surge é o da Rússia de Putin, um governo formado essencialmente por ex-espiões, que utilizou a espionagem sistemática para intimidar opositores e levantar informações que seriam usadas em processos judiciais contra adversários. Mas, nesse caso, trata-se de um governo que conduziu o país a uma ditadura constitucional”, completa.

Kramer também menciona a Rússia, só que a revolucionária. “Trotsky pensava que iria herdar o comando após a morte de Lênin porque liderava o Exército Vermelho. Acabou exilado e morto por Stalin. Esqueceu que o exército estava infiltrado pelo partido, mas não o contrário. Há semelhanças com o Brasil: o Estado está tomado pelo partido do governo”, compara.

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